Alguns dias haviam se passado desde que Lewis deixou o hospital, mas a verdadeira batalha apenas começava. As feridas em sua pele estavam cicatrizando, mas as da mente e do coração ainda sangravam em silêncio, invisíveis aos olhos dos outros.
As noites eram longas, povoadas por pesadelos que o arrastavam de volta para aquele quarto sufocante, para os gritos abafados, para o frio do metal contra sua pele. Mesmo acordado, ecos do passado se misturavam ao presente, fazendo com que, às vezes, ele se perguntasse se realmente estava livre.
Por recomendação médica, ele começou a frequentar sessões de terapia. No consultório da psicóloga, suas palavras saíam trêmulas, como se tivessem medo de se fazer ouvir.
Demorou um pouco pra ele falar abertamente com a profissional, mas quando começou, Lewis não parou. Ele falava sobre aqueles dias de pesadelo, sobre lutar sozinho, tentando suportar tudo sem pedir ajuda, e sobre o momento em que tudo dentro dele se quebrou.
Aceitar que havia tirado uma vida era um fardo constante. Ele não se arrependia – nunca poderia se arrepender de ter sobrevivido –, mas isso não significava que o peso fosse menor. O sangue em suas mãos podia ter sido lavado, mas a lembrança ainda manchava sua alma.
O caso da morte de Edward foi analisado minuciosamente pela promotoria, mas, no fim, as evidências e os depoimentos foram claros: Lewis havia agido em legítima defesa. Não houve processo, não houve julgamento. Apenas uma conclusão formal e o encerramento do caso.
A decisão trouxe um alívio silencioso, mas não apagou tudo. Nenhuma declaração oficial poderia libertá-lo da prisão interna em que ainda se encontrava.
E, no fundo, ele sabia que a sentença mais difícil de cumprir seria aquela que impôs a si mesmo.
Samanta também começou a fazer terapia. Desde a morte do pai de Lewis, um medo profundo a assombrava—o medo de estar sozinha, de ter que carregar todas as responsabilidades nos ombros sem ninguém para apoiá-la.
O peso de ser mãe solteira sempre a acompanhou, uma sombra persistente que a fez, talvez, baixar a guarda diante da promessa de estabilidade que encontrou ao lado de Daniel. Ela queria acreditar que tinha feito a escolha certa, que estava criando um ambiente seguro para seu filho. No entanto, agora percebia que esse mesmo medo a cegara, fazendo com que ignorasse sinais que, em retrospecto, pareciam óbvios.
Sua mente a torturava, sufocando-a com a ideia de que falhara como mãe, de que não fora capaz de proteger o próprio filho quando ele mais precisou. Era um pensamento cruel, um que a perseguia nas noites insones e nos momentos de silêncio. Mas, com o passar dos dias e com a ajuda de sua terapeuta, Samanta começou a enxergar as coisas com mais clareza. Ela tentou. Por mais que agora parecesse insuficiente, ela tentou chegar até Lewis. O que a atormentava não era a falta de amor, mas a falta de insistência.
E, apesar de tudo, ela aprendeu a aceitar algo essencial: era humana. Cometeu erros, sim, mas nunca por negligência ou descaso—ela errou tentando acertar. E, mais importante, entendia agora que o passado não podia ser mudado, mas o presente e o futuro ainda estavam em suas mãos.
Por isso, dia após dia, ela se esforçava para estar ao lado de Lewis, para que ele soubesse, sem sombra de dúvida, que não estava sozinho. Que ela estava ali e estaria sempre. Eles estavam juntos nessa jornada de superação, e Samanta faria tudo o que estivesse ao seu alcance para reconstruir a confiança entre eles.
Com Daniel, formavam uma família. Uma família quebrada, talvez, mas ainda assim uma família. E, juntos, estavam tentando encontrar um caminho para seguir em frente—para deixar as ruínas do passado para trás e construir algo novo, algo mais leve.
Enquanto isso, o corpo de Edward foi sepultado sem qualquer cerimônia. Nenhum velório, nenhuma despedida. Apenas um caixão baixando à terra, sem flores, sem homenagens.
Daniel tomou essa decisão sem hesitação. Apesar de ser seu filho, Edward não merecia um enterro digno, não depois de tudo o que havia feito. Mas, mesmo sem cerimônia, ele estava lá quando o caixão desceu. Assistiu em silêncio, sem uma palavra, sem uma lágrima.
No fim, tudo se resumiu a isso—o peso da terra cobrindo o caixão, e o silêncio engolindo o que restava de Edward Stewart.
Daniel se pegava perguntando se poderia ter feito algo diferente, alguma escolha que mudasse o destino de Edward. E se não tivesse se separado? E se não tivesse internado Ana, mãe de Edward, na clínica de reabilitação? Será que Edward teria se tornado outra pessoa?
A verdade, no entanto, era amarga.
Edward sempre foi uma criança difícil. Desde cedo, exibia uma frieza inquietante, convencido de sua superioridade. Não hesitava em pisar nos outros para conseguir o que queria.
Daniel lembrava-se das brigas constantes com Ana, que colocava Edward num pedestal e alimentava sua arrogância.
Ele tentou ensiná-lo a ser humilde, a respeitar os outros, mas nada adiantava. Então, somado aos vícios incontroláveis de Ana, chegou o dia em que Daniel simplesmente desistiu e decidiu pôr um fim àquilo.
Ainda assim, jamais poderia ter imaginado quão profundo era o lado sombrio de Edward — nem até onde ele seria capaz de chegar.
Observando o caixão ser enterrado, Daniel soltou uma rosa negra sobre a sepultura, deixando aquele capítulo para trás.
A notícia sobre o que aconteceu na casa dos Stewart se espalhou rapidamente pela cidade. Murmúrios percorriam ruas e corredores, cada relato distorcendo um pouco mais a verdade.
Todos comentavam sobre o filho mais velho que abusava do irmão e sobre o mais novo, que, depois de tanto sofrer, o matou.
Os vizinhos cochichavam sempre que Samanta ou Daniel passavam, olhares carregados de curiosidade e julgamento. E, embora a escola estivesse em recesso, era inevitável que a história dominasse qualquer conversa quando as aulas retornassem. Lewis já conseguia imaginar os sussurros nos corredores, os olhares pesados sobre ele.
Mas, apesar do isolamento que se impôs, ele encontrou apoio onde menos esperava. Alex e Nick souberam da tragédia e começaram a visitá-lo.
No início, Lewis tentou afastá-los. A vergonha o consumia, e o peso das lembranças tornava difícil encarar qualquer um que soubesse o que acontecera. Mas Alex e Nick se recusaram a abandoná-lo. Eles continuaram aparecendo, dia após dia, sem forçar conversas, sem exigir explicações—apenas estando ali.
E, com o tempo, Lewis cedeu.
Aos poucos, permitiu que eles se aproximassem. Começaram a sair juntos algumas vezes, e, por alguns instantes, ele conseguia respirar, sentindo um vislumbre de normalidade em meio ao caos.
Mas o passado ainda estava por toda parte.
Foi por isso que, depois de muitas conversas, Samanta e Daniel decidiram que o melhor seria deixar a cidade. As paredes daquela casa haviam testemunhado dor demais, e continuar ali seria como viver preso dentro de um pesadelo.
Concordaram que se mudar para os Estados Unidos, onde morava a irmã do pai de Lewis, Érika, poderia ser a chance de um recomeço.
Na nova cidade, ninguém os reconheceria. Não haveria sussurros, nem olhares carregados de lembranças. Lewis não seria “o garoto que sobreviveu a um irmão abusivo”.
Ele poderia, enfim, ser apenas ele mesmo.
Uma semana antes da mudança, Daniel fez uma última visita à clínica de reabilitação onde Ana estava internada. Sabia que precisava contar a ela sobre o Edward, ainda que omitisse os detalhes.
— Houve um acidente, e Edward… não sobreviveu — explicou, com a voz firme, mas carregada de dor.
Ana, transtornada, não conteve a raiva.
— Isso é culpa sua! — ela gritou, as palavras impregnadas de ódio e mágoa. — Não bastou você destruir minha vida, agora tirou meu filho de mim também. Você é um monstro, Daniel!
Ele ouviu em silêncio, aceitando sua ira como um desfecho necessário. Saiu sem olhar para trás, ciente de que aquele ciclo, ao menos para ele, havia terminado.
No dia da partida, o aeroporto estava lotado, mas, para Lewis, tudo ao redor parecia em câmera lenta. Alex e Nick estavam ao seu lado, tentando distraí-lo e impedir que mergulhasse em pensamentos sombrios. Ambos sabiam que aquele momento marcava o fim de uma era e o início de um novo capítulo que ele estava disposto a enfrentar.
Nick sorriu e, tentando aliviar o clima, deu um leve empurrão em Lewis.
— Quando você voltar, a gente sai pra comer qualquer coisa. Nada de esquecer da gente, ouviu?
Lewis sorriu em meio às lágrimas, a expressão suave e, pela primeira vez em muito tempo, aliviada.
— Obrigado por não terem desistido de mim, mesmo sendo tão insuportável.
— Insuportável? — Nick balançou a cabeça, rindo. — Acho que eu é que fui insistente demais. Mas alguém precisava fazer o trabalho sujo, né?
Os três riram juntos, uma risada leve, carregada de esperança. Eles se despediram com acenos e promessas silenciosas.
Enquanto Lewis caminhava, sentiu o peso do que deixava para trás, mas também uma nova determinação. Ao lado de Samanta e Daniel, dirigiu-se ao portão de embarque, levando consigo as cicatrizes da dor, mas também uma força renovada.
Ele sentia orgulho de si mesmo. Fora levado ao limite, enfrentara horrores inimagináveis.
Mas sobreviveu.
Não precisava mais ser o bom garoto que aprendera a ser para evitar a dor.
Ele podia ser ele mesmo.
Porque Lewis estava vivo. Não Edward.
E Edward nunca mais poderia machucá-lo.
Limpou as lágrimas e inspirou profundamente, olhando para o horizonte além do aeroporto.
Por mais que o passado ainda o assombrasse, estava decidido a dar uma nova chance a si mesmo.
O trauma o acompanharia, mas ele aprenderia a viver com ele, a superar um dia de cada vez.
O futuro não seria fácil, mas ele estava disposto a enfrentá-lo.
E ali, naquele aeroporto, prometeu a si mesmo que aproveitaria essa nova oportunidade.
Por todas as dores que suportou, ele viveria. Por inteiro. E em paz.
FIM