Daniel continuava parado na porta do quarto de Lewis. O ar parecia pesado, sufocante, como se cada partícula carregasse o peso da tragédia que se desenrolava diante dele. Seus pulmões recusavam-se a trabalhar direito, e cada respiração ardia em sua garganta, como se o próprio oxigênio estivesse contaminado pelo horror.
A cena era um pesadelo do qual ele não conseguia desviar os olhos. O sangue parecia vibrar em sua visão, um vermelho grotesco que manchava o colchão e se espalhava lentamente, engolindo o tecido com uma voracidade silenciosa. O corpo de Edward jazia ali, os membros largados de maneira antinatural, a pele quase tão pálida quanto os lençóis manchados. O contraste entre a vida e a morte nunca lhe parecera tão gritante.
No canto oposto do quarto, Lewis estava encolhido contra a parede, um espectro de si mesmo. Seu corpo nu tremia incontrolavelmente, os braços magros apertando-se ao redor de si, como se tentasse se proteger de um frio que não vinha do ambiente. Os olhos, vidrados, estavam perdidos em algum ponto distante, sem realmente enxergar nada. Ele balançava levemente para frente e para trás, um movimento rítmico e mecânico, como se tentasse embalar a própria dor, como se aquilo pudesse arrancá-lo daquela realidade.
— Chame uma ambulância, — ele murmurou. Mas, quando percebeu que sua ordem não fora imediatamente atendida, ergueu a voz, firme: — Chame uma ambulância, Samanta!
Samanta estava estática, como se o choque a tivesse transformado em uma estátua de carne e osso. Os olhos arregalados saltavam entre o corpo inerte de Edward e a figura trêmula de Lewis, incapazes de processar a brutalidade do que via. Só depois do segundo comando, alto e estridente, que ela pareceu despertar do torpor.
Os dedos trêmulos se apressaram em procurar o telefone, mas falhavam miseravelmente na tentativa de discar os números. O aparelho escorregou de suas mãos uma vez, caindo com um som seco no chão. Ela arfou, abaixando-se para pegá-lo, a respiração curta e errática.
Daniel sentiu uma onda de frustração misturada ao desespero. Cada segundo perdido poderia significar uma sentença definitiva. Ele apertou os punhos, mantendo o olhar fixo no corpo sobre a cama, esperando um sinal, um mínimo movimento que lhe dissesse que ainda havia tempo.
Mas Edward não se movia.
E Lewis… Lewis parecia ter se perdido dentro de si mesmo.
Daniel deu um passo hesitante à frente, como se o simples ato de se aproximar tornasse a cena ainda mais real. O cheiro metálico do sangue era sufocante, impregnando o ar e se alojando em sua garganta, tornando cada respiração um esforço tortuoso. O estômago revirou em protesto, e por um instante ele teve que lutar contra o impulso de virar o rosto, de afastar-se daquela visão macabra. Mas não podia. Precisava ver. Precisava confirmar o que, no fundo, já sabia.
Inclinou-se ao lado do filho, os joelhos cedendo sob o peso do choque e da dor. A mão pairou sobre o corpo inerte, trêmula, relutante, como se o simples toque fosse capaz de transformar tudo em um pesadelo do qual ele poderia acordar. Mas, quando seus dedos finalmente encontraram a pele pálida e fria de Edward, o golpe da realidade veio com força total.
Seu filho estava morto.
Daniel engoliu em seco, um nó espesso e cortante se formando em sua garganta. Sua mente, incapaz de aceitar o óbvio, repetia a pergunta sem resposta: Como? Como aquilo havia acontecido? Como chegara a esse ponto sem que ele tivesse percebido os sinais?
Um movimento do outro lado do quarto capturou sua atenção, arrancando-o de seu torpor. Ele desviou o olhar e encontrou Lewis ainda encolhido contra a parede, o corpo ainda balançando levemente. A escuridão em seus olhos vazios era perturbadora.
No entanto, um som frágil, quase imperceptível, quebrava o silêncio pesado.
— Eu só queria que ele parasse… eu só queria que ele parasse… —
A voz de Lewis era um sussurro trêmulo, um lamento repetitivo que se esvaía no ar como um eco distante.
Daniel sentiu o impacto daquelas palavras como um soco direto no peito. O sentido por trás delas se infiltrou em sua consciência como um veneno lento, espalhando-se por cada canto de seu ser. A compreensão o atingiu com violência, deixando-o atordoado, paralisado diante da verdade que nunca havia considerado.
Ele engoliu em seco, sentindo o gosto amargo da culpa, da impotência. Seus olhos recaíram sobre o garoto, e só então ele percebeu os detalhes que antes pareciam embaçados pelo choque. O rosto de Lewis estava marcado por arranhões e hematomas, a pele manchada de roxos e vermelhos que contavam uma história que ele não tivera coragem de enxergar antes. Feridas abertas, cortes superficiais—fragmentos visíveis de algo muito mais profundo.
Como ele não havia notado? Como pôde ser tão cego?
Aproximou-se devagar, os movimentos cuidadosos, temendo assustá-lo ainda mais.
— Lewis? — Sua voz saiu mais frágil do que esperava, carregada de hesitação. — Você pode me ouvir?
Mas Lewis não reagiu. Não piscou, não moveu os olhos, não deu nenhum sinal de que estava ciente da presença de Daniel. Ele parecia distante, perdido em um vazio impenetrável.
Daniel fechou os olhos por um momento, tentando conter a onda de náusea e desespero que ameaçava dominá-lo. O peso esmagador da culpa apertava seu peito, roubando-lhe o ar. Como se tudo dentro dele estivesse desmoronando ao mesmo tempo.
Um som engasgado rompeu o silêncio.
Ele abriu os olhos e viu Samanta na porta, a respiração errática, o rosto banhado em lágrimas. Ela parecia ter corrido, o telefone ainda apertado contra o peito trêmulo.
— A-Ambulância está vindo — ela disse, a voz entrecortada por soluços.
Aquelas palavras pairaram no ar como um alívio tardio, como uma esperança frágil que se debatia contra a brutalidade do que já estava feito.
Mas Daniel sabia que nada poderia mudar o que acontecera ali.
Daniel levantou-se. Ele tirou seu casaco e estendeu, com mãos trêmulas, cobrindo Lewis com todo o cuidado que conseguia reunir. Ao ver o corpo ferido e vulnerável do menino, seu coração quebrou em mil pedaços. Era um simples pedaço de tecido, mas naquela situação parecia uma tentativa desesperada de cobri-lo do horror que o rodeava. Ele não sabia o que mais fazer. Apenas isso: proteger, ainda que tarde demais.
— Tire ele daqui, — disse para Samanta, sua voz rouca.
Samanta assentiu, engolindo o choro. Com um movimento hesitante, ajoelhou-se ao lado de Lewis, os olhos marejados varrendo o rosto dele em busca de alguma fagulha de reação.
— Lewis, meu amor? — murmurou, a voz embargada.
Lewis não reagiu. O corpo continuava balançando para frente e para trás, os lábios repetindo o mesmo mantra quebrado, preso dentro de si. Ele não a via. Não a ouvia. Não estava ali.
Samanta sentiu um frio percorrer seu corpo, mas não hesitou. Com um esforço extremo, envolveu os braços ao redor dele, tentando levantá-lo. O peso de Lewis era esmagador, não por ser fisicamente pesado, mas porque parecia que toda a sua alma havia sido drenada, deixando apenas um corpo exausto e vazio.
Com passos lentos, ela o guiou para fora daquele quarto.
Quando finalmente chegaram ao próprio quarto, ela o sentou na cama com cuidado, como se qualquer movimento brusco pudesse quebrá-lo ainda mais.
Lewis continuava inacessível. Seus olhos estavam abertos, mas não viam nada. Seu corpo estava ali, mas sua mente, sua essência, seu ser estavam perdidos em algum lugar onde ninguém podia alcançá-lo.
Samanta apertou os punhos, tentando manter o controle da respiração. Ela precisava pensar. Precisava entender o que havia acontecido.
— Lewis… o que aconteceu? Quem fez isso com você? — perguntou, a voz carregada de desespero.
Nada. Nenhuma resposta. Nenhuma piscada. Nenhuma indicação de que ele sequer ouviu.
Seu coração batia tão forte que doía. A cabeça girava, um turbilhão de perguntas colidindo entre si, todas levando a uma única explicação.
Alguém entrou em sua casa. Alguém invadiu, fez tudo aquilo…
Porque só podia ser isso.
Ela se recusava a aceitar a outra possibilidade.
Porque… não. Não era possível.
Isso tem que ser um pesadelo.
Isso é um pesadelo.
As lágrimas escorriam quentes por seu rosto quando ela puxou Lewis para um abraço apertado, afundando o rosto contra seus cabelos, balançando-se junto com ele.
— Vai ficar tudo bem, meu amor — sussurrou, mesmo que cada fibra de seu ser dissesse o contrário.
Mesmo que nada jamais pudesse voltar a ser bem novamente.
Daniel ficou sozinho no quarto. Ele prendeu a respiração por um instante, incapaz de suportar aquela cena por mais tempo. Saiu do cômodo em passos apressados, apoiando-se contra a parede do corredor assim que cruzou a porta.
Sentia-se fraco. O corpo inteiro parecia prestes a desmoronar. Sua mente era um turbilhão caótico, oscilando entre a realidade diante de si e a fúria crescente que rugia dentro dele.
— Porra… porra, porra! — O grito rasgou sua garganta ao mesmo tempo em que seu punho se chocava contra o chão, a dor física sendo um reflexo pálido da tempestade que se formava dentro dele.
Sua voz ecoou pelo corredor, carregada de fúria e desprezo. Mas a raiva não era voltada apenas para Edward. Ela era, acima de tudo, contra si mesmo.
As memórias vinham como estilhaços, lembranças de atitudes e gestos de Edward que antes ele considerava impulsivos, apenas uma fase rebelde. Os sorrisos disfarçados, debochados… Sempre falando como se soubesse de algo que Daniel não sabia. Tudo isso retornava agora com uma força esmagadora, fazendo-o se sentir ainda mais horrível.
Seu estômago revirou ao perceber o quanto havia sido cego.
O som distante da sirene da ambulância cortou seus pensamentos, puxando-o de volta para o presente. Daniel inspirou profundamente, forçando-se a erguer a cabeça. Seu corpo ainda estava tenso, mas ele sabia que precisava reagir.
Endireitou-se e lançou um último olhar para dentro do quarto. O corpo sem vida de Edward jazia ali, imóvel, coberto pelo lençol. A visão fez seu peito se apertar, mas algo mais chamou sua atenção.
Sobre a escrivaninha ao lado da cama, um caderno estava aberto, uma página arrancada repousando sobre ele. As bordas rasgadas denunciavam a urgência com que fora arrancada, e no papel, letras tortas e trêmulas chamaram sua atenção.
Daniel franziu o cenho, seu coração acelerando de forma instintiva. Com passos hesitantes, aproximou-se, pegando a folha com dedos trêmulos. Conforme lia as primeiras palavras, sentiu o chão sumir sob seus pés.
Era uma carta.
Uma carta de despedida.
Seu estômago se revirou. Seu corpo tremeu. Ele precisou se apoiar na cabeceira da cama para não cair. Os olhos corriam pelas linhas, absorvendo cada palavra como um soco direto no peito.
Lewis…
Lewis pensava em acabar com a própria vida.
O ar escapou de seus pulmões em um soluço rouco. Um tremor tomou conta de seu corpo quando as lágrimas começaram a escorrer sem controle, manchando o papel em suas mãos.
O peso daquela revelação foi esmagador.
A raiva voltou como uma corrente elétrica percorrendo cada célula do seu corpo. Daniel ergueu os olhos, a visão ainda turva pelas lágrimas, e encarou o corpo coberto de Edward. Seu estômago se embrulhou, o nojo fervendo dentro de si.
Daniel sequer podia imaginar o tanto que Lewis sofreu, pra ele no final decidir acabar com a própria vida.
Daniel trincou o maxilar, limpando as lágrimas com um movimento brusco antes de dobrar a carta e guardá-la no bolso. Não havia tempo para fraquejar.
Virou-se e caminhou até a porta, os passos agora decididos, carregados de uma raiva fria e incontrolável. Assim que a abriu, os paramédicos entraram apressados, suas vozes enchendo o ambiente.
Mas Daniel não conseguia mais ouvi-los.
Seus pensamentos estavam fixos em Lewis.